“Existe uma guerra na Síria. Existem crianças passando fome. Tem gente sem celular.”

Hoje foi um dia horrível, do inicio ao fim. Dia de escolhas difíceis e de uma energia ruim, inexplicável, mas que eu sinto. Comecei a chorar por volta do meio dia, e ainda não parei.

Na sequência ruim do dia descobri logo cedo que minha empresa dos sonhos não existira mais por conta do cargo publico de uma das sócias. Existe obviamente prejuízo financeiro, mas eu não ligo, me afetou o prejuízo emocional. Não queria desistir do sonho, alguém fez isso por mim. Repito sem parar “não ia dar certo mesmo”. Sou boa nas mentiras que conto pra mim mesma. O dia segue, eu posso viver com isso.

Inicio uma conversa dura no telefone. Tudo que esta relacionado a raça tem sido particularmente difícil de engolir. Não é de ouvir, não me incomoda em nada, mas são certezas difíceis de engolir quando eu sei que não são verdades. “Vai dar certo”, “Vamos nos comprometer”, “Vamos nos esforçar” — DireitoCruzadoJab e eu vou ao chão. Sou boa nas mentiras que conto pra mim, sou péssima com as mentiras que os outros me contam pois normalmente parecem verdades. Eu tentaria acreditar, queria abraçar de coração a esperança, mas não consigo mais.

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Me sinto com a idade errada, quero as pessoas maduras em suas conversas, ações e relações. É como se tudo tivesse misturado em mim e corpo, mente e alma se desconectam ou me tornam essa quimera.

Hora da reunião da tarde, que eu amava e hoje odeio, falamos sobre como estamos. Todas as vezes que contamos o que nos faz feliz, o que aprendemos, listamos coisas boas, eu me sinto um alien. Aqui não tem nada bom, porque me sinto obrigada a participar disso? Eu não sei. Deve ser algum tipo de tortura estranha em que só os deuses podem assistir. E eles assistem meu balé, eu me debatendo por dentro numa dança ridícula entre não gritar e sair chorando como uma criança pequena e parecer amável e dócil como um cachorrinho.

Minha respiração fica mais rápida e a minha voz muda. PORQUE?PRA QUE? Se sabemos que ninguém esta bem, porque nos agarrar nessas migalhas de mentira? Ou porque estamos competindo por quem esta sobrevivendo melhor? Será que não é obvio porque são sempre as mesmas pessoas a ter algum ponto de consolo? Falo rápido e quase com raiva — Tô na merda — minha cabeça preenche com o resto — e isso não altera em nada nem a ordem do dia e nem a vida de quem escutou meu reclamar. Os deuses aplaudem, fim do primeiro ato.

Sobrevivi a essas duas horas, mas não sem sequelas, saio rápido da frente do computador e sou inundada por um mar de lagrimas. Do desconforto, da desesperança. É possivel amar pessoas e querer elas muito longe de nós? Será que ainda tenho traquejo social pra tolerar? Será que eu quero tolerar?

Choro nas mensagens de whatsapp, me sinto acolhida quando meu amigo resume minha dor. “Você não cansou das pessoas , ou de amar, você cansou do viver, é muita coisa”. Sim, eu estou cansada. Estou cansada de muita coisa, principalmente de me encaixar naquilo que é esperado de mim, cansada de ser o saco de pancada habitual das pessoas, cansada de jogos, de traições, cansada das pessoas fingindo que esta tudo bem e que é sempre melhor não falar sobre o que é difícil demais.

Se mais cedo no meu dia eu disse que tinha aprendido a não falar mais o que eu penso, fico achando agora que é só mais uma lição dolorosa demais.

Já deslisei pra dentro do pijama, vou ver uma serie e dormir. Jogo três comprimidos na boca, faz parte da sanidade. Escolho erroneamente ver I May Destroy You, queria muito ver alguma coisa que uma mulher negra produzisse e protagonizasse. Queria ver Michaela Coel.

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A atriz, produtora-executiva e roteirista Michaela Coel em cena de I May Destroy You, sua série na HBO

Em nada na sinopse falava sobre todas as violências na série, sobre inúmeros estupros, sobre os malditos flashbacks. A série é ótima e todo mundo deveria ver, mas pra mim foi o ultimo prego no caixão.

Não me entra na cabeça o porque a gente precisa fingir que algo que aconteceu simplesmente não aconteceu. Será que só somos boas o suficiente sem esta parte terrível da nossa vida? Porque só somos abraçadas se não estivermos danificadas como uma fruta ruim?

Gatilho total. Identificação total.

Passar o dia pensando coisas sobre como a vida das outras pessoas é pior. Como acontece coisa triste demais comigo. Me questionar se tudo é real, se é possivel nascer com uma sobra do azar por perto. Esse esforço pra pensar “mas pelo menos…

Repito pra mim mesma que estamos na pandemia, por enquanto eu tenho teto, meu filho é perfeito, eu não sinto frio, eu não sinto mais fome, não estou doente, tenho trabalho. É quase um mantra pra compensar tudo aquilo que doí, e quer saber não funciona.

Me vi em Arabella — a protagonista da série — quando ela repete “Existe uma guerra na Síria. Existem crianças passando fome. Tem gente sem celular.” numa tentativa de fazer o que acontece com ela ter menos importância.

Hoje podia não ter existido. Não precisava. Talvez amanhã seja melhor, mas eu não consigo mais acreditar nisso. Vou tentar lidar com o que foi hoje, e descobrir sozinha o que eu consigo de verdade encarar.

Essa noite levei pra lixeira do prédio a fantasia de carnaval rasgada do dia 25 de fevereiro de 2020. É só mais um dado, nada importante.

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