Cidades de Papel

Desde maio deste ano (2018) eu tenho assistido muita coisa entre filmes e séries. Algumas coisas escolho deliberadamente ver, outras acabam passando e eu acompanho em meio a insônia.

Numa destas noites a assisti a Cidades de Papel, meu companheiro já tinha assistido e não gostou muito do filme, típico filme adolescente. Eu que não era leitora do John Green decidi dar uma chance e precisava mesmo de alguma coisa mais leve. Enfim vi, vi e de alguma maneira o filme mexeu comigo. Já faz um bom tempinho que vi, estava me propondo a ver de novo , mas melhor escrever sobre a impressão inicial.

A história gira em torno do amor que Quentin sente por Margô, a menina da casa do lado, e como ela é incrível, fantástica , naquele estereótipo básico da Manic Pixie Dream Girl,  “Garota-Fada Maníaca dos Sonhos” em tradução livre,  que salva a vida de um cara meio merda, mas o ponto é que a Margô some e Quentin vai atrás dela acreditando que ela deixou mensagens secretas só pra ele. Até ai beleza.

Cidades de Papel

 

Não sou mais adolescente, embora tenha passado a infância/adolescência mergulhada nestas histórias e particularmente gostar delas, mas o final pra mim deixou um gosto meio agridoce. Não vou contar o final, mas o ponto é que, por grande parte do filme Margo é “vendida” como uma BIG BITCH. Ela faz as pessoas de palhaço deliberadamente e ai tadinho do Quentin e pobre garoto. Mas o caso é que, pelo menos no filme, parece que existem algumas diferenças com relação ao livro, Quentin imagina quem é a Margô, e age conforme aquilo que ele ACHA sobre ela. Quando ele descobre que ela é bem mais complexa e sombria e “normal” do que a imaginação dele criou, ele se liberta (ou não segura a onda a meu ver).

Esta deve ter sido a coisa X que me pegou no filme, sobre como as pessoas criam uma personalidade pra quem elas mal conhecem. Tem até quem julga ser “a pessoa que mais conhece” a outra se sentindo no direito de dizer como ela se comportaria numa determinada situação.

Não sou adolescente, mas me vejo existir através da imaginação alheia , e por gente que também não tem nada de adolescente. Já perdi as contas de quantas vezes eu quis perguntas pras pessoas : Porque você acha que eu agiria assim ou gostaria de algo assim. Mas um absurdo sentimento de vergonha ao constranger alguém me domina.

Confesso que pensei sobre o filme por vários dias, consegui o livro, coloquei na lista de leitura, li a respeito de como as pessoas interpretavam a coisa toda e caramba, como uma mesma mídia/arte/mensagem pode chegar de maneiras completamente distintas pra cada um de nós.

Revisitei a minha memórias pra verificar quem são as pessoas que realmente me conhecem, sabem realmente o que eu responderia numa determinada situação, sabe o que eu gosto, o que não gosto. São poucas, não enchem os dedos de 1 mão e algumas destas pessoas eu ainda perdi no meio do caminho. Tento pensado bastante na forma como me relaciono com o mundo e o porque do meu total desinteresse em permitir que pessoas se aproximem, como se não valesse muito a pena bater de frente com uma ideia pré concebida. Até porque eu não acredito que alguém se desapegue de uma criação do seu próprio imaginário.

Só tenha em mente que às vezes o jeito como a gente pensa em alguém não é exatamente o jeito como essa pessoa é.

Cidades de Papel

Quando este imaginário é construido por séculos ai fica pior ainda. As mulheres negras há muito são perseguidas por estereótipos negativos, enraizados em uma história de racismo e escravidão.
O mito da “mulher negra furiosa” tem suas raízes na América do século XIX, quando shows de menestréis, que envolviam esquetes cômicos e atos de variedades, que zombavam dos afro-americanos se tornaram populares. As mulheres negras eram interpretadas por homens brancos com excesso de peso que pintavam seus rostos com tinta preta e vestiam ternos para mostrar mulheres menos humanas, nada femininas, e bem distante de um padrão de beleza aceitável. Sua principal maneira de interagir com os homens ao seu redor era gritar e lutar e sair irritada, irracionalmente, em resposta às qualquer tipo de circunstância em torno delas.

O lugar da Mulher Negra Furiosa aparentemente é o lugar do qual o imaginário geral me coloca, e não só a mim, pelo tom de pele, pelo meu tamanho, por inúmeras vezes ser colocada em espaços especificamente para ser desafiada, irritada, convidada a defender os meus iguais, porque afinal eu faria isto (e de fato fiz) com unhas e dentes, inclusive para que inclusive outras mulheres negras e pessoas negras pudessem estar num lugar agradável a branquitude. Irônico não? Estar neste lugar posta pela mão do próprio movimento negro?

Eu não sei exatamente como me livro desta marca que parece queimada a ferro, a etiqueta que carrego constantemente. Não é possível ter qualquer tipo de sentimento, reclamar por uma injustiça, maternar , se apaixonar sem que essa sombra sinistra recaia sobre mim, e certamente sobre outras tantas.

Margô some pra se conhecer e permitir que outros a conheçam do zero deixando pra traz os antigos conhecidos. Talvez seja exatamente isto que eu preciso agora, eliminar tudo aquilo que é conhecido, ou dar muito menos importância pra isso, e apesar de não poder abandonar de vez a cidade de papel da qual eu faço parte – leia-se a bolha – acho que pode ser o começo de uma mudança de atitude.

No fim das contas eu gostei do filme. Tem muito mais coisa que eu ainda quero assistir e ler, vou tentar fazer isto com o coração aberto, passou a fazer da minha rotina de auto-cuidado e tem valido muito a pena.

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