Das muitas formas de violência (ou carta pras ‘terfa tudo’)

Todo mundo sabe que a violência não se dá somente quando existe algum tipo de abuso físico. Sofremos violências de diversas formas. Violência intrafamiliar que inclui abuso físico, sexual, psicológico, a negligência e o abandono. Violência institucional, motivada por desigualdades seja de gênero, étnico-raciais, ou de classe (quando não por todas juntas). Violência moral, que envolve calunia, difamação a injuria contra uma determinada pessoa. E entre algumas outras formas de violência existe a violência psicológica, violência que tem como objetivo degradar ou controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões de uma outra pessoa por meio de intimidação, manipulação, ameaça direta ou indireta, humilhação, isolamento, bullying, ou qualquer outra conduta que implique prejuízo à saúde psicológica, à autodeterminação ou desenvolvimento pessoal de alguém.

Como mulher, negra, lésbica, gorda, periférica (processos identitários que cabem apenas a mim) conheço de perto cada um desses tipos de violência e recentemente dois episódios me fizeram pensar e repensar meu modo de me comportar diante desses abusos.

A alguns dias alguém que não aceitou ser ignorado em sua abordagem me puxou pelo braço. Ele homem cis branco jovem parado na porta de um bar, abordando quem quer que passasse para saber em quem a pessoa votaria. Pra quem respondia e nesta resposta contrariava o inquisidor, sobravam impropérios sem fim, até a pessoa sumir de vista. Pra quem ignorasse a pergunta e o homem ainda teria o plus de levar pra casa uns hematomas. Do alto dos seus direitos auto adquiridos, um completo desconhecido se sentiu na total liberdade de me abordar, me tocar e me ferir. Das muitas pessoas ao redor não houve quem se levantasse, não houve reação, não houve fala, nem minha nem de mais ninguém. Está ali presenta a natureza com que a violência contra mulher é tratada.

Como feminista, embora com carteirinhas tomadas, eu sei exatamente o que eu deveria fazer, e inclusive não me surpreendeu o comportamento daquele ser. Não entrei em choque pela liberdade que ele possui, não entrei em choque pela reação das pessoas no bar. Lamentei tudo isso, me assustei obviamente mas não me surpreendi.

A violência machista acontece exatamente desta forma, livre, imune de julgamentos.

Hematomas

Muito mais assustadora e deixando muito mais marca do que essas que eu tenho hoje é a violência praticada por quem deveria combatê-la. A algumas semanas comecei a receber uma série de mensagens que questionavam minha militância, minhas escolhas, minha vida baseada nos meus relacionamentos. De alguma forma alguém havia se desagradado da minha maneira de amar. Essa discordância deu espaço e liberdade para que este alguém (ou muitos alguéns) adentrassem minha vida e mente através de mensagens no e-mail, nos blogs onde escrevo, por sms e todos os meios de comunicação possíveis, de forma violenta. Se engana quem imaginou que isso tudo se dá por conta de um perseguidor (que até existe, como se não bastasse). A intimidação, agressão e ameaça partiu de outra mulher, ou de um grupo de mulheres. Mulheres que baseadas num fundamentalismo de ódio estão dispostas a destruir outras mulheres exclusivamente porque são mimadas demais, egocêntricas demais e parecem ter uma imensa dificuldade de interpretação de texto uma vez que atribuem a documentos um posicionamento que simplesmente não está por ali (qualquer semelhança com fundamentalistas religiosos que tem sua própria interpretação da bíblia não é mera coincidência).

Eu me surpreendi, fiz piada, me assustei, me intimidei, eu me encolhi. Já estava cansada de levar tanta porrada de gente desconhecida, me reservei o direito do silêncio. Passei a não me sentir segura em absolutamente espaço nenhum, passei a temer o que poderia chegar de ataque não apenas pra mim, mas a pessoas que eu amo. Em menos de duas semanas minha vida virou de cabeça para baixo num choque difícil de digerir.

De tudo aquilo que me tiraram esses dias nada vai superar meu direito de ir e vir, que nem os hematomas que eu ostento conseguiram fazer com tamanho talento.

Só que eu decidi que apesar de vocês, da violência, da intimidação e do ódio gratuito, eu sei bem quem eu sou, e não tenho o menor problema com isso. Eu sei no que eu acredito, pelo que vale a pena brigar. Quem enfrenta todo dia racismo, gordofobia, lesbofobia, elitismos mil, não pode se acovardar diante de quem não consegue nem utilizar o artigo certo para tratar as pessoas.

Esse texto é só para dizer que cansei, vocês não me intimidam mais. A violência está ai na rua, e eu acabo encarando todos os dias. Técnicamente eu já apanhei, já me feri fisicamente e continuo aqui, mais feminista que nunca, mais disposta a rachar macho escroto. Assim como estou disposta a rachar mina sim, mina racista, mina transfobica porque da minha parte não vai ter sororidade, palavrinha mal utilizada para encobrir as cagadas que vocês fazem e nada além disso.

Vou estar nos mesmos espaços em que sempre estive, fazendo as coisas que sempre fiz. Vocês não me intimidam mais.

A luta de vocês está equivocada, não é a mim que o ‘patriarcado está aplaudindo de pé’, os aplausos são pra vocês, que gastam mais tempo cuidando da vida sexual de outras mulheres, agredindo e violentando outras mulheres ao invés de concentrar seus esforços numa luta anti machismo, racismo, classismo, transfobia, lesbofobia, bifobia.

O feminismo que vocês reivindicam pra si sequer reconhece em vocês representantes, vocês são um grupo minúsculo, perdido em um monte de textos e informações que vocês não têm capacidade para entender. Apenas MELHOREM.

Hoje o que mais existe por ai é gente vazia, que não sabe amar, preenchendo espaços com ódio e desespero. Sinto muito se vocês são dessas pessoas sem amor que vão surtando naquilo que transformaram em lesbianidade política. Deve ser bem triste viver sem afeto.

Sobre a minha vida, eu estou bem, estou feliz e não tenho nada para me envergonhar, para temer, para fazer com que eu ande de cabeça baixa ou me retire dos espaços que eu conquistei. Eu sigo gostando exatamente das mesmas pessoas que eu gosto, defendendo os mesmos ideais que já defendia e agora com muito mais força. Seja qual fosse a intensão de vocês devo comunicar que vocês falharam miseravelmente e eu já não retrocedo mais.

Aqui na periferia crianças brincam na rua com suas pipas e não raro alguém perde uma cortada pelo cerol, a pipa dificilmente cai na mão de quem cortou. Quem consegue a pipa troféu grita em desafio pra quem ficou sem — “Vem Buscar”. No momento é tudo que eu posso dizer pra vocês sobre este lindo instante…
VEM BUSCAR!!!!!!

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