E todo mundo sabe sobre o maldito Mississippi
Eu vou te contar uma história. Na verdade um pedaço de história que até outro dia eu mal sabia que estava vivendo.
O ano era 2018, eu vivia a vida que achava que era possivel e até aquele momento parecia a melhor que eu poderia ter. Eu estava casada com um homem concentrado em seu processo de transição, era mãe de uma criança negra como eu em plena formação com seus 12 anos. Sem emprego, eu vendia o almoço pra comprar a janta, freelando dia e noite. Na minha cabeça eu precisava vencer, prosperar, e acreditava que era isso que eu estava fazendo quando na verdade era apenas uma sobrevivência bem distante de viver. Eu seguia fazendo o que sabia fazer, calada.
Neste mesmo ano eu vivi a maior decepção de toda a minha vida. Vi uma comunidade inteira de mulheres negras me virando as costas e me acusando de tentar destruí-las enquanto a policia batia na minha porta, já que para que essa comunidade pudesse existir, o endereço de registro de tudo, por toda a internet era o meu endereço físico. Este foi o ano em que a impossibilidade de emitir qualquer som, qualquer palavra, qualquer protesto chegou e se instalou no abraço que o medo deu em mim, na minha família e no processo solitário dos 4 anos com consequências graves que se seguiram depois disto.
Eu me senti menos negra, foi como ter arrancado de mim aquilo que eu fazia com mais paixão que era escrever, gritar, bater de frente com tudo aquilo que eu achava que era possivel mudar. Lutar pelo que eu acreditava com todas as minhas forças.
Eu queimava de dor, de raiva, de medo. O abandono daquelas que eram a minha casa foi algo brutal, desencadeador de dores profundas. Mas eu não sabia que ainda poderia piorar.
Eu não cabia mais no meu mundo. Se ser negra significava apunhalar outras mulheres negras pelas costas, ou concordar com a liderança que nós mesmas acabamos por aplaudir, não era isso que eu queria ser. Se entre iguais eu não era bem vinda onde seria o meu lugar?
Como se num golpe do destino neste mesmo ano uma oportunidade de ter meu trabalho reconhecido e valorizado surgia ainda pelas mãos e curadoria de uma mulher negra. O meu ano começaria completamente diferente de tudo que eu poderia imaginar. Eu jamais tinha visto aquela quantidade de dinheiro junto. Era janeiro de 2019 e parecia que enfim eu tinha “chegado lá”.
Meu deslumbre pelo mundo que se abria diante dos meus olhos era evidente, mas eu conhecia bem o jogo. Conhecia o jogo e não gostava das regras, tanto que ainda não tinha topado jogar. Mas ali naquele momento entrar pro jogo significava sair da sobrevivência e passar a viver. Significava pagar um ano de escola de filho, comprar panela, sair pra jantar. Significava segurança.
Se os meus não me queriam por perto, a branquitude “queria”.
Quem é preto sabe muito bem que tipo de gente escura é bem vinda em espaços onde o dinheiro escorre como agua , em desperdício, produtos ruins, comida cara que não alimenta ninguém, propagandas hipster, shot matinal de açafrão e muito vídeo manifesto.
Normalmente aquele preto único, disposto a ser o negro magico. Frases de efeito educativo, disposição pra não se ofender com qualquer atitude racista, maternar adultos como se fossem crianças de 4 anos cometendo pequenos erros e não crimes. A gente conhece bem como é o negro de estimação. Não raro esta pessoa se sente especial por ser querida e mal sabe que esta fazendo este papelzinho, mas tem quem saiba e escolha fazer este papel porque ele traz vantagens. Correção, traz uma vantagem: caber.
Se “domesticar” é ganhar a chance de caber e usufruir de uma nova escravidão mental travestida de oportunidade. Uma pena que o preço a se pagar por isso é extremamente alto.
Em menos de seis meses, essa atmosfera era parte do meu dia a dia. Eu me vi desejando coisas que eu nunca quis e tudo era pouco. Entre os desejos mais sombrios estava o de pertencimento.
Eu queria muito fazer parte daquele mundo e nesse ponto eu já tinha caído na armadilha que eu havia criado pra mim mesma. Aquilo que era pra ser um jogo se voltou contra mim e eu me perdi. A fantasia passou a ser real.
Pra atingir o que eu queria eu precisava simplesmente ser alguma coisa oposta a quem eu era. Não dava pra ser negra, gorda, mãe, com um casamento falindo, sem viagens internacionais, sem inglês, sem sapatos de R$1000, sem conhecer lugares descolados (brancos) da cidade. Estava tudo errado, eu estava errada.
Em novembro de 2019 meu casamento acabou, e eu perdi tudo que eu tinha construído até ali. Mas tive a sensação de que havia sido acolhida num momento complicado e ali eu já não queria mais me adaptar as pessoas que estavam ao meu redor — eu queria SER aquelas pessoas.
Eu queria ser amada, e achava que era. Meus novos amigos, gente que me dava abraços quando me encontravam em lugares bonitos. Ao mesmo tempo em que eu acreditava que poderia fazer daquele espaço um espaço realmente seguro. Sempre acreditei na educação, não tanto na comunicação não violenta que eu aplicava naquele momento o tempo todo.
Eu passava por cima de absurdos, via outras pessoas passando por situações de racismo explicito e ponderava. “Elas não sabem o que fazem”. Seria eu a salvar aquelas pessoas que se banhavam nas águas do equivoco. Eu só precisava ser paciente, carinhosa, gentil, didática. E eu fui realmente tudo isso, e cada vez que eu tentei fui lida como agressiva. Eu não vencia, cada vez que abria a boca haviam represálias, e mesmo que não fizesse o menos sentido, eu acreditava que a culpa era minha por não conseguir ser tão suave.
Foi nessa época que eu passei a viver com um mantra na mente : “ninguém gosta de gente triste, ninguém gosta de gente que reclama”. E sempre que alguma coisa incomodava e eu reagia, na sequencia eu entrava numa espiral de culpa e dor porque eu havia me traído.
Eu já não me vestia da mesma maneira, não ouvia as mesmas musicas, eu já não falava da mesma maneira. Meus valores podiam ser negociados sem grandes problemas se isso pudesse agradar a um ou a outro.
Eu voltei a viver um relação de ódio comigo mesma, que eu já conhecia da época em que eu queria ser a esposa perfeita (pra 1950 branca). Eu queria ser perfeita de novo, excelente no trabalho que fazia, mas ainda superior no meu comportamento. Pra perfeição, me faltava ser uma delas, simples assim , e se branca e magra eu não seria jamais em aparência, eu observaria cada movimento, os gestos, o respirar, as opiniões, a risadinha, a admiração por coisas inúteis, a falta de consciência de classe e seria enfim mais uma.
Minha simulação de branca chegava a causar confusão em quem me conheceu antes de 2019.
Eu evitava falar de raça, eu não queria saber do assunto, seria negro demais. Eu me preocupava todos os dias de trabalho com medo de alguém ser racista e eu não aguentar e me manifestar, acontecia vez ou outra e era como se uma carteirinha fosse tomada.
Eu evitava politica demais, feminismo demais, eu me esforçava pra ser ingênua e desprotegida — mesmo sabendo da impossibilidade de me verem nesse lugar, eu chegava a brigar pra ser tratada com a mesma delicadeza que todas as demais. E eu sentia de verdade e conseguia ser realmente ingênua no meu delírio.
Eu vi amigas minhas recebendo um tratamento horroroso, vi serem vitimas de racismo, de machismo, de etaríssimo, classismo. Eu sorri, acenei e segui sentada na mesa que bem ou mal me servia. Eu me apaixonei e neguei essa paixão de todas as maneiras possíveis porque viver ela seria dar passos pra me distanciar do que aquelas pessoas eram. De novo seria negro demais, imaturo demais, seria nas palavras de uma uma dessas pessoas “um imenso ridículo, querer tão pouco”. Se elas diziam, discordar seria um suicídio social. Eu estava tentando aprender.
Com essas pessoas eu passei pela maior violência que uma mulher pode viver. Fui parcialmente acolhida, a intensão parecia boa. Mas me senti julgada por não seguir em frente com uma denuncia, ouvi “você vai deixar acontecer com outras pessoas”. E na minha cabeça só existiam dois fatos:
1- tudo aconteceu dentro de um carro de aplicativo, a pessoa que estava dentro do carro era um homem branco, e no registro do aplicativo a imagem do “dono” do carro era um homem negro — o que será que aconteceria no final dessa história?
2- eu não sabia por quais outros testes e exames eu passaria e quais os procedimentos pra descobrir quem era aquela pessoa e meu corpo poderia denunciar alguém que nem de longe tinha alguma coisa haver com isso, mas a pele negra também o colocaria em perigo.
Eu queria poder chorar, gritar, falar tudo que eu estava sentindo, tirar aquilo de mim. mas me vi cercada de pessoas brancas que aparentemente sofriam e choravam mais do que eu só por me olhar. Parecia doer muito mais nelas do que poderia doer em mim.
Depois disso tudo só me restava sufocar tudo isso, me vestir de branca e ir trabalhar.
Um ano e meio entre segredos cochichos e mal estar, este espaço que eu tentava tornar seguro pra mim e outros pretos me levou a uma tentativa de suicídio no dia que ouvi que me faltavam qualidades humanas pra ser uma liderança ( algo que eu não queria ser, mas se era o desejo das outras tinha que ser o meu também). E uma outra tentativa depois de muito tempo longe desse espaço em que aqueles que eu considerava meus “amigos” não me alertaram sobre algo que iria acontecer reunindo todos eles, com exceção dos que não pertenciam, daqueles que falavam negro, andavam negro e dançavam negro apesar dos esforços.
Sempre existiram os bem vindos, aqueles que são negros mas que não sabem o significado de ser negro. Não é meu caso, não existiu um dia na minha vida em que eu não soubesse o que é ser negra e o significado disto.
No the Sims de mim mesma, a vida de mulher branca que impregnou na minha alma e pareceu por tanto tempo a única maneira de ter sucesso nesse universo de marcas e publicidade quase me matou e no final das contas não trouxe nada de vantajoso a não ser um pet de gente branca.
Eu não tinha nenhuma noção disto até ver alguém que amo adaptando a personalidade a depender do grupo social e eu quebrei por dentro. Ali estava eu na frente de um espelho horroroso que causava dor em outras pessoas. Definitivamente eu não queria aquilo pra mim.
Em janeiro de 2019 eu achei que começaria uma nova vida maravilhosa como mulher branca e meus problemas sumiriam. Em setembro de 2023, mês do meu aniversário, eu sinto que (graças a terapia) eu estou tendo a chance de começar a viver de novo, como a pessoa que eu sempre fui, consciente da estrutura racista que me cerca, consciente que o jogo esta ai pra quem quiser jogar, que eu não gosto das regras e vou preferir passar a minha vez por agora. Não sem lamentar ter feito esta experiência na vida.
Para o mercado de trabalho, para as marcas, o tempo de celebrar a negritude e colocar os quadrados pretos nos feeds ficou pra traz a algum tempo. ser antiracista é ter um preto de estimação. Eu fui uma.
De George Floyd pra cá as coisas ficaram piores pras mulheres negras. Mas a gente nunca deixou de correr atras, e não seria agora, mesmo sozinha. Nem todo mundo precisa de uma aldeia, e a gente não deveria tentar se encaixar em uma, seja ela branca ou preta.
E eu que não acredito em culpa e por consequência não acredito em pedidos de desculpas que não são feitos de ações de mudança, não espero que quem comungou desses espaços tenha alguma mudança real caso leia isso. Estruturas são estruturas. Mas saiba que sempre que a gente cruzar o olhar num espaço em que eu estiver por acaso ou por pertencimento, eu vou saber que você É um racista.
“And everybody knows about Mississippi goddam”
Se você me conheceu entre 2019 e 2023 eu afirmo pra você que não existe nada sobre mim que você conheça. Mas te convido a conhecer, talvez você não goste e tá tudo bem, porque se tem uma coisa que eu entendi com força desta vez, é que eu não preciso agradar absolutamente ninguém.
Sigo sem precisar ser aprovada, autorizada ou padronizada. Depois de 4 anos minha voz pode ser minha de novo.
Uma vez entre búzios e tarô eu fui perguntada sobre como eu conseguiria encontrar o amor com as minhas atitudes. Meio fora de mim respondi “não quero amor, quero PODER”. E essa sou eu, não sou delicada, não sou sutil e tão pouco silenciosa e sei que poder é não ter medo.
Eu voltei pra casa e vamos jogar outro tipo de jogo, sem simulação. Os dados são lançados novamente.