Apesar das mudanças legislativas, da implementação de leis e dos esforços coletivos para a conscientização e mudança cultural, a vitimização da mulher com relação a crimes contra a dignidade sexual e a violência doméstica ainda desperta discussões.
Há quem aponte que hoje um acusado de violência contra uma mulher, quando denunciado, é imediatamente preso ou já inicia o processo penal condenado, havendo automaticamente a presunção da sua responsabilidade. Infelizmente sabemos que este discurso não condiz com o dia a dia da mulher violentada. Vivemos numa sociedade patriarcal, que oprime mulheres e ainda as classifica como “honestas e desonestas”, lhes obrigando a provar que são vítimas.
Existe uma tendência muito forte à coisificação (transformar em um objeto) da mulher, notadamente em músicas e peças publicitárias, que reduzem a mulher ao seu corpo e enfatizam o quanto são “descartáveis”.
O estupro é a expressão mais brutal da coisificação da mulher e da ideia de que ela é propriedade de alguém.
Segundo o US Department of Justice (Departamento de Justiça dos EUA) esta era a realidade americana em 2012:
[ul class=”list list-cross_black”] [li]A cada hora, 16 mulheres enfrentam estupradores[/li] [li] Uma mulher é estuprada a cada seis minutos [/li][li] A cada 18 segundos uma mulher é espancada [/li][li]Desde 1974, a taxa de agressões contra as mulheres jovens (idades 20-24) saltou 50 por cento [/li][li]Três em cada quatro mulheres serão vítimas de pelo menos um crime de violência durante a sua vida [/li][li] Apenas 50 por cento dos estupros são comunicados e daqueles relatados, menos de 40 por cento irá resultar em prisões[/li][li]Uma em cada sete mulheres atualmente cursando faculdade foi estuprada [/li][/ul]
De acordo com a Secretaria de Políticas Publicas para as Mulheres da Presidência da Republica (SPM-PR), a cada 12 segundos uma mulher é estuprada no Brasil. Em 2012 , a cada hora, duas mulheres foram atendidas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) com sinais de violência sexual, segundo o Ministério da Saúde. Estes dados existem a partir dos casos registrados de alguma maneira, mas sabemos de outros tantos que não foram e jamais serão documentados. Nossos dados não são tão diferentes dos do restante do mundo, então não temos porque lidar com estupros de maneira diferente baseado apenas na geografia da violência.
É absurdo na Índia, na Nigéria, nos Estados Unidos e aqui.
O estupro corretivo, que atinge, especialmente, mulheres lésbicas, também é uma realidade no Brasil. Ele é cometido sob alegação de ser uma “cura” para homossexualidade. De acordo com as estatísticas, 6% das vítimas de estupro, em 2012, eram mulheres homossexuais. Segundo a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) estes dados estão relacionados ao estupro corretivo.
Em quase 65% dos casos, o estuprador é um familiar ou namorado. Outras ocorrências comuns são no período noturno, em terrenos baldios, ruas pouco iluminadas e também nos transportes públicos. As principais vítimas são as mulheres da classe trabalhadora, pobres e negras que moram na periferia e usam os transportes coletivos.
O racismo, o preconceito, a discriminação, hipersexualização estão fortemente representadas na sociedade brasileira e reforçam as desigualdades e exclusão das mulheres negras em diversos setores. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), esta discriminação resulta numa taxa 6 vezes maior de mortalidade no grupo de jovens, meninas e mulheres negras com relação a mulheres não-negras.
No Rio de Janeiro, as mulheres negras são a maioria entre as vítimas de homicídio doloso – aquele com intenção de matar (55,2%), tentativa de homicídio (51%), lesão corporal (52,1%), além de estupro e atentado violento ao pudor (54%).
Analisando friamente todas as estatísticas apresentadas, sabemos que a violência sexual é uma sombra constante e próxima da mulher negra, mas pouco falamos ou lidamos com esta questão.
Voltando ao ponto de que nem todo estupro é denunciado, nem toda a vítima é socorrida do seu algoz e nem todo estupro é reconhecido como tal, fica a pergunta: porque isto ocorre?
Sacrificando nossas Almas
“Para Mulheres Negras, a quem o estupro diz respeito, raça precedeu questões de gênero. Somos ensinadas que nós somos primeiramente negras, e então mulheres … Mulheres Negras sobreviveram, mantendo silêncio, não apenas por vergonha, mas por uma necessidade de preservar a raça e sua imagem. Em nossas tentativas de preservar o orgulho racial, nós mulheres negras temos muitas vezes sacrificado nossa almas “
- Charlotte Pierce-Baker
- Autora de Surviving the Silence – Black Women’s Stories of Rape
Nós mulheres negras somos as mais agredidas e as que menos denunciam seus agressores.
Conhecemos a dimensão da violência, lutamos para que a cultura do estupro seja exterminada, damos nossa voz em defesa das vítimas. Mas porque nossa voz falha enquanto as vitimas somos nós?
Quando a palavra estupro é mencionada, no imaginário coletivo forma-se a imagem de um ataque brutal (e pode, de fato ser) , executado por um indivíduo ou um grupo de desconhecidos, um ato de violência facilmente identificado e portanto fácil de executar a denúncia. Mas baseado nas estatísticas e no mundo real, sabemos que a coisa não funciona exatamente desta forma. Uma grande parte dos estupros acontecem dentro de casa, é praticado por Maridos, Amigos, Namorados e outros parentes. A relação afetiva com o estuprador dificulta o entendimento de que o que se passou é de fato um crime.
Diferente da forma como o estupro é tratado na wikipedia e no inconsciente coletivo o Estupro é a prática não-consensual do sexo, e ponto final. Nem sempre será “ imposto por meio de violência ou grave ameaça de qualquer natureza”. Ele também se dá através de relações de poder e dependência que não são necessariamente físicas.
Quando o estupro ocorre por baixo deste manto, além do medo, da vergonha e da dor, a vítima ainda se encontra confusa com relação as suas “obrigações” como mulher, o desenrolar dos fatos e o que se entende sobre violência e aceitação de determinadas atitudes na sociedade. Um homem que exija sexo independente da vontade de sua parceira é um estuprador, mas este exigir sexo é tão naturalizado que é visto como uma piada ou uma insistência apenas, isto quando não é lido como um ato romântico de puro desejo. A mulher tem a “obrigação” de satisfazer o seu homem – esta frase convertida em imagens “românticas” pelas redes sociais nada mais é do que um pouquinho da lenda urbana que torna o estupro um ato legítimo. A boa e velha cultura do estupro fazendo seu papel de produzir mais vítimas.
Se a mulher agredida dentro deste contexto reconhece a violência ainda precisa lidar muitas vezes com o fator da dependência daquele indivíduo, seja dependência financeira ou emocional. Além da falta de suporte para a violência sofrida e a imensa dificuldade de ter de provar que foi um estupro.
Mulheres agredidas por desconhecidos de maneira brutal possuem suas denuncias desacreditadas, se vêem lutando para provar que a violência realmente ocorreu. Quando o fazem, ainda passam pelo julgamento alheio sobre seu comportamento, sua roupa, sobre sua fala. Quando o estupro ocorre dentro de relações afetivo-familiares a vítima se vê em um abismo de solidão. Todos os julgamentos estarão lá presentes com o agravante de lhe ser imposto a convivência com o agressor cotidianamente, a ausência de apoio de suas outras relações familiares, que não raro também terão uma relação afetiva com o individuo agressor, dificulta, ainda que inconscientemente, a proteção e acolhimento desta mulher. A mulher violentada neste contexto está em ambiente hostil e em constante conflito.
Precisamos Falar sobre o assunto
Especificamente com relação a mulher negra, o silêncio, ferramenta de sobrevivência, neste caso torna-se prisão. A Necessidade de não adquirir mais um rótulo negativo numa trajetória já tão marcada acaba sequestrando a mulher agredida de si mesma.
Segundo a OMS , vítimas de estupro são :
[ul class=”list list-cross_black”] [li]3 vezes mais propensas a sofrer de depressão.[/li] [li] 6 vezes mais propensas a sofrer de transtorno de estresse pós-traumático. [/li][li]13 vezes mais propensas a abusar de álcool. [/li][li] 26 vezes mais propensas a abusar de drogas. [/li][li] 4 vezes mais propensas a pensar em suicídio. [/li] [/ul]
Somemos aos efeitos acima o silêncio. O que guardar a dúvida ou a certeza de um estupro pode causar a uma mulher? Como se mede o tamanho desta opressão?
Precisamos transformar nossa sociedade para que vítimas não sejam julgadas no lugar de seus agressores, para que o medo não supere a necessidade de autodefesa, para que uma mulher não carregue a vergonha de receber o rótulo de “a estuprada”, esta vergonha não deveria ser da vítima e sim de seu agressor. Precisamos preparar a sociedade para ouvir, aceitar, acreditar e dar suporte a mulher vítima de violência. Precisamos tirá-las do ambiente hostil.
Nós mulheres negras precisamos falar de todas as agressões cotidianas que extrapolam o racismo. Precisamos rever nossos conceitos de amor (passados por gerações), de relacionamentos, de preservação, precisamos nos desconstruir e reconstruir em torno deste assunto para que possamos ser o suporte umas das outras também.
Eu levei 9 anos para reconhecer que a ação de alguém que eu amei em um determinado momento da minha vida tratava de uma extrema violência. Falar em voz alta ainda é impossível. Depois do reconhecimento ainda foram outros dois anos para que eu contasse para alguém. Este contar foi desacreditado e mal recebido e serviu para que eu guardasse de volta uma história que a principio era só minha. Ainda não é confortável, ainda não será feito cara a cara com minha família (embora eu saiba que este texto irá fatalmente circular) . Escrever este texto me causa náuseas, dores de cabeça, um nervoso extremo. Demorou muito tempo para que eu entendesse que a culpa não era minha, que a culpa nunca é da vítima.
Meu silêncio permitiu que meu agressor me mandasse e-mails, mensagens nas redes sociais e me perseguisse por anos enquanto eu trocava meus endereços, perfis e o tratava apenas como um inconveniente na vida. Meu silêncio , medo e vergonha contribuíram também para que a cada 12 segundos uma mulher fosse vítima de estupro. Falar é necessário, ter meios para tanto é mais ainda.
Precisamos continuar falando sobre violência sexual, seus efeitos sobre as mulheres negras, o impacto em nossas comunidades, como lidar, como reagir. Sem medo, sem vergonha, sem pré ou pós julgamentos. Precisamos quebrar o silêncio. Este aqui é só o começo.
* As imagens que ilustram o post fazem parte da exposição My Body, My Choice apresentada na Universidade de Rhodes em Cape Town
seu texto é lindo, obrigada por compartilhar conosco
A violência direcionada às mulheres é realmente um assunto triste e polêmico. O que acontece com os homens para agir dessa forma? Devemos pensar que, na verdade, esse tipo de violência não é uma questão feminina, e sim masculina.
Esse vídeo excelente envolve essa questão tão difícil de forma magistral. Vale a pena conferir porque o palestrante consegue expor suas ideias de forma muito envolvente:
http://www.ted.com/talks/lang/pt-br/jackson_katz_violence_against_women_it_s_a_men_s_issue.html?source=facebook#.UtmLYQGYGmp.facebook
Precisamos urgentemente pensar em como os homens são criados (mulheres também), desde pequenininhos. Ou seja, isso engloba a educação machista que infelizmente é a causa desse e de tantos outros problemas.
Muito bom. Todas as mulheres deveriam falar abertamente sobre esse assunto, pra servir de exemplo para outras mulheres que se calam, e principalmente para a sociedade mudar o pensamento sobre “estupro”. E tbm mostrar que as mulheres são vítimas.
Meu parabéns sobre esse texto!
Eu só fui ter plena consciência do que é a cultura do estupro quando há alguns anos descobri que a minha noiva na época havia sido violentada duas vezes, sendo pelo menos uma das vezes quando ainda namorávamos na época de escola, quando ela tinha somente 15 anos! Foi com muita dor e dificuldade que ela me contou o que ocorrera, quase dez anos depois do ocorrido, porque, na mente dela havia um conflito muito intenso entre ela saber que sofreu um crime e o sentimento de culpa pelo o que aconteceu. Como podia ser culpada? Eu não entendia na época! O mundo sumiu abaixo dos meus pés ao descobrir pelo que ela passara! Eu a amava muito (de certa forma ainda amo) e fiz de tudo pra ajuda-la. Realizei várias pesquisas sobre o estupro, sobre como auxiliar psicologicamente a mulher que sofrera tal agressão. Encontrei muita coisa! Para meu desespero e tristeza, me deparei com os dados e situações relatadas nesse excelente texto. Fiquei em choque ao ver como nós homens tratamos as mulheres. Apesar do asco me debrucei sobre essa questão, procurei informações sobre tudo isso, para assim poder tentar ajudar minha noiva. Infelizmente não tive muito sucesso. O trauma que ela sofreu foi severo demais. Apesar dos meus esforços, sentia que não era suficiente. Ela rompeu nosso relacionamento tempos depois o que me arrasou porque eu de fato amava muito. Ainda sofro por não ter conseguido ajuda-la. Hoje sou casado com uma mulher maravilhosa, uma companheira incrível a qual amo muito, a qual felizmente nunca sofreu nada parecido! Mas tenho muito, muito medo que algo assim possa ainda acontecer. Os dados e os fatos corroboram meu medo!
Procuro fazer minha parte. Quando ensinava (sou Professor de Geografia embora afastado da licenciatura) procurava conscientizar meus alunos sobre a questão, mostrava que essa realidade precisava mudar. Decidi que ficar parado não iria ajudar em nada pra resolver essa situação. É um trabalho complicado e admiro muito vocês pelo excelente trabalho aqui no Blog. Continuem com ele e apesar de todas as dificuldades, persistam! É preciso dar um basta nessa cultura vil, torpe e degradante em que uma mulher é tratada de maneira tão humilhante!
Parabéns!!!