Ser a mulher a quem recorrem é, ao mesmo tempo, um peso insustentável e uma privação devastadora. Jamais lisonjeiro. O peso vem do acúmulo constante das dores e inseguranças alheias, despejadas em mim sem a mínima reflexão sobre o impacto que isso tem. A privação é não ter voz, ser invisibilizada, não ter meus sentimentos reconhecidos ou sequer ser permitida de tê-los. Fui transformada na grande mãe, na psicóloga não remunerada, um papel imposto por estereótipos raciais e de gênero que reduzem minha existência à serventia alheia (ou pelo menos tento acreditar que existe uma razão social/cultural pra isso – algo que explique e coloque em um lugar menos pior).

Essa dinâmica não é algo natural ou acidental; é um reflexo direto de um sistema que se aproveita da generosidade e resiliência das mulheres negras, constantemente colocadas no papel de cuidadoras universais. Estudos sobre a interseccionalidade, como os trabalhos de Kimberlé Crenshaw, evidenciam como mulheres negras são frequentemente vistas como “mulas” emocionais, esperadas para carregar as dores do mundo sem nunca reclamar ou buscar espaço para si mesmas. Essa expectativa é uma extensão do racismo estrutural que nos desumaniza, reduzindo-nos à utilidade para os outros enquanto nos nega a complexidade e o cuidado que merecemos. Mas confunde e massacra ainda mais quando a gente percebe que somos mulas de outras pessoas negras também, o que torna mais difícil a digestão.

É desgastante ser tratada como refúgio para os problemas dos outros, mas nunca como destino para amor, cuidado ou atenção. Pessoas vem até mim porque sabem que eu ouço, que dou conselhos, que acolho suas dores. Mas o que recebo em troca? Respostas vazias como “Entendo”, que nada mais são do que preámbulos para mais despejos emocionais.

É como se houvesse uma barreira invisível que impede as pessoas de enxergar minha humanidade. Elas me poupam de nada. Não hesitam em despejar suas queixas, suas dores, mas evitam oferecer o mesmo espaço para mim. Eu me pergunto: pra quem elas guardam esse amor de poupar? quem está merecendo a leveza dessas pessoas? – A cada expressão do que estou pensando ou sentindo que não vá em solução a uma questão de quem está alugando minha orelha, minha mente, meus dias, recebo soluções simplistas, um convite para “res-pi-rar”, pra parar de pensar, pra ir tomar um banho e focar em outra coisa como se minha dor fosse algo que se dissipasse com um suspiro profundo, dois minutos pra ouvir a história de mais algum fracasso que não é meu mas eu vou entender a miséria pessoal de alguém. Entender, acolher, pensar junto, jogar confete, colar Band-Aid.

Elas dizem que confiam em mim, mas essa confiança é unilateral. Quando é a minha vez de falar, de abrir o coração, a resposta é quase sempre o silêncio. Um silêncio opressor, o dado a quem está louco ou descontrolado precisando de “tempo para me acalmar”.

Esse silêncio não é neutro. Ele é violento. Ele me diz que não sou digna de espaço, que meu sentir é incômoda demais para ser legitimado. É um silêncio que reflete estereótipos históricos: a “mulher negra forte”, que deve suportar tudo e nunca quebrar, ou a “mulher histérica”, que é descartada quando ousa exigir algo para si. Esse tratamento é um lembrete cruel de que, para muitos, eu sou apenas um recurso emocional à disposição, não uma pessoa completa e digna de reciprocidade.

Carregar as dores alheias não é um ato de amor; é uma imposição. O que fica em mim não é leveza, mas um peso cumulativo que consome minha energia e obscurece minha identidade. Ser transformada na “grande mãe” – um arquétipo profundamente racista – significa que minha humanidade é negada. Esse arquétipo perpetua a ideia de pessoas muito especificas existem apenas para servir, para sustentar, para prover emocionalmente, enquanto são abandonadas em suas próprias necessidades.

Acho interessante quando isso vem de possíveis interesses afetivo-sexuais. Como manter qualquer tesão por alguém que se tornou um filhote incapaz? Que mãe deseja o próprio filho ou a uma criança (quem o faz tem lá suas questões) mas nada é mais broxante que ver diante de si um adulto se tornando um filhotinho incapaz de elaborar suas próprias questões e dificuldades. Ao menos algumas, pelo menos alguns dias.

A dinâmica das amizades é ainda mais complexa, porque algumas parecem apenas utilitárias e talvez devam ser assim mesmo. Talvez as pessoas não saibam ser de outra maneira. Só é bom quando elas arrancam coisas da outras porque se sentem injustiçadas. Gente que sempre precisa, mas não tem nada pra dar (e uns ainda se orgulham disso).

Também acho interessante o fato de que pessoas extremamente machucadas escolhem ferir de morte quem não tem absolutamente NADA a ver com suas feridas. Elas vão pegar tudo aquilo que não tiveram coragem de dizer pras pessoas que as machucaram, sejam pais e mães, amores, irmãos, filhos, amigos, não importa, elas pegam as conversas que não tiveram, a coragem e o máximo de ódio e grosseria possível e jogam em cima de quem se dispôs a ouvir suas dores.

Muitas vezes, eu me pego refletindo sobre como seria ser ouvida com o mesmo cuidado que dedico aos outros. Alguém que me dissesse: “Eu estou aqui para você”, e a pessoa realmente estar, sem pressa, sem julgar, sem tentar me corrigir e acima de tudo, sem insultar a minha inteligência. Mas essas pessoas parecem estar em outro mundo, reservadas para aqueles que são vistos como mais merecedores – as pessoas que amam, as que escolhem poupar, as que nunca precisam ser tão fortes quanto eu.

A questão é que eu não sou à prova de fogo. Tenho dias em que quero gritar, em que o cansaço é tão profundo que mal consigo funcionar. Esses dias são tratados como fraqueza, como falha, como algo que eu deveria esconder para não incomodar. E ainda assim, continuo. Continuo porque a esperança é uma das últimas coisas que me resta, porque me recuso a aceitar que minha vida seja reduzida a um ciclo eterno de dar sem receber.

Eu já fui o tipo de pessoa que acreditava que era preciso romper esse tipo de ciclo. Que se a gente falasse como o racismo e o machismo estruturam essas dinâmicas, como a imagem da mulher negra forte é usada para nos explorar emocionalmente, enquanto nos negam o direito à vulnerabilidade, as coisas poderiam ser diferentes para outras gerações pelo menos. Mas se não tem ninguém ouvindo – pra quem não quer saber, somos apenas entretenimento em mais um serviço obrigatório reservado as mães, que é a educação.

“Eu não sei, por isso eu erro, me ensina e faça com calma, paciência, enquanto eu te furo com essa faquinha”.

Estudos e pesquisas apontam que mulheres negras são frequentemente vistas como menos humanas, menos sensíveis, mais capazes de suportar dores – um viés desumanizador que não pode mais ser ignorado – mas é, não é só nos hospitais que a gente recebe menos anestesia.

Quero ser clara: minha raiva é justificada. Minha tristeza é válida. Minha existência não deve ser resumida ao que eu posso oferecer aos outros. Quero ser amada por completo, incluído aquilo que é incômodo, aquilo que desafia. Quero ser ouvida, porque minha voz importa. E quero que aqueles que dizem gostar de mim escolham me poupar – não por conveniência, mas porque me enxergam como alguém que merece descanso e cuidado.

Mesmo sendo escuta sem eco eu continuo, mas não por resignação. Continuo porque sei que há poder em resistir, em recusar o apagamento, em nomear as violências que me atravessam. Minha sobrevivência é um ato de revolta contra os papéis que me impuseram. Eu não quero florescer; quero desmantelar. Quero que o espaço ao meu redor seja recriado ( não um dia, hoje, agora, comigo viva) para que caibam minha raiva, meu cansaço, minha inteireza. Não para agradar ou acomodar, mas para existir plenamente, com tudo o que sou.

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mariarita

Escrevo para não enlouquecer sobre coisas que já me enlouqueceram.

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