Assisti ao documentário Witches e, desde então, algumas coisas não saem da minha cabeça. Não é apenas sobre a forma como o filme conecta a história das bruxas com as experiências de mulheres hoje, mas também sobre como ele me fez revisitar minhas próprias questões. Elizabeth Sankey, a diretora, fala sobre a psicose pós-parto que viveu e como o estigma em torno da maternidade e da saúde mental nos empurra para o silêncio. Enquanto eu assistia, era como se estivesse vendo parte daquilo que eu mesma vivi projetada, mas também percebia o abismo da narrativa quando se trata de mulheres negras, embora durante o documentário isto seja abordado nas entrevistas.
Sankey mergulha na ideia de culpa, vergonha e isolamento que tão frequentemente acompanham as mulheres após o parto. Isso ressoou muito comigo. Lembrei do meu próprio parto, marcado por uma sequência de violências que até hoje me assombram. Eu não sei exatamente se tinha um quadro de psicose pós-parto, talvez. Em terapia entendi que pode ter sido um quadro de depressão pós parto, mas que não foi diagnosticado corretamente, não foi sequer tratado como um problema, foi tratado como um capricho de mulher difícil. No meu parto algo quebrou dentro de mim. Foram dias complicados, fui ignorada, cortada, invadida. Minha dor foi minimizada, minha voz foi silenciada, e minha existência foi reduzida a um corpo que precisava operar, cumprir seu papel, sem questionamentos. Quando penso no que Sankey diz sobre as conexões entre os julgamentos de bruxaria e as pressões contemporâneas sobre as mulheres, vejo com clareza como isso se manifesta de formas tão cruéis para mulheres negras, que mesmo se questionadas para confessarem bruxaria teriam dificuldades de identificar sintomas.
No filme, Sankey explora a representação das bruxas na cultura pop, nos filmes, na história. A bruxa como uma figura que desafia, que incomoda, que não se encaixa. Mas, para mulheres negras, nem sequer existe esse lugar de bruxa. Não somos vistas como ameaçadoras no mesmo sentido. Somos animalizadas, não mágicas e poderosas em algum nível. Nossa loucura é suja, não cabe em hospitais psiquiátricos, não raro acaba relegada as ruas. A figura da bruxa, por mais negativa que possa ser retratada, ainda carrega uma aura de poder. Já a mulher negra é tratada como utilitária, como se sua função fosse apenas servir, nunca questionar, nunca ser complexa.
Penso no meu parto. O que aconteceu comigo não foi um caso isolado, e é isso que torna tudo mais insuportável. Cheguei ao hospital sentindo dores insuportáveis, e a única coisa que ouvi foi que precisava “não fazer drama”. Fui cortada sem anestesia. Enfiaram tampões no meu corpo e esqueceram de tirar. Passei semanas em dor constante, febril, me sentindo à beira da morte, enquanto cuidava de um bebê prematuro em um inverno congelante. E quando tentei falar sobre isso, fui tratada como se estivesse exagerando, como se fosse “normal” que mulheres passem por isso. Minha dor foi ignorada, e qualquer tentativa de expressá-la era interpretada como histeria ou fraqueza. Eu passei a acreditar que meu filho seria roubado, eu não queria que ninguém tocasse nele. Uma agressividade tomou conta de mim, eu parei de dormir. Meu marido tentou me “devolver” pra minha família porque eu era louca, como se estivéssemos nos século sei lá o que e ele quisesse o dote pago de volta, um médico que eu nunca vi o rosto deu o diagnóstico : bipolar – e isso me acompanhou a vida toda.
No documentário, Sankey fala sobre como as mulheres julgadas como bruxas confessavam crimes absurdos sob tortura, coisas que nunca haviam feito, outras que jamais aconteceram em realidade. E eu vejo como isso se reflete hoje, quando somos forçadas a aceitar narrativas que não são nossas para caber no que esperam de nós. No meu caso, fui diagnosticada com bipolaridade pouco depois do parto. Nunca tive bipolaridade (o plot), mas minha insistência em dizer que algo estava errado foi vista como um problema psiquiátrico. Era mais fácil me patologizar do que reconhecer como violência o que estava acontecendo, ainda mais quando muitas pessoas repetem a mesma narrativa de qual é o nosso lugar. Assim como as mulheres que eram torturadas até confessar que eram bruxas, eu fui pressionada a aceitar um diagnóstico que explicava tudo sem responsabilizar ninguém.
Essa é a diferença entre ser vista como uma bruxa ou como um animal. A bruxa, mesmo que demonizada, é uma figura de desafio. O animal é apenas domado, controlado, descartado quando não serve mais.
Witches é um documentário excelente, a abordagem que mistura fato histórico com cultura pop e entrevistas é uma costura sensível sobre um assunto que a gente não fala nem com as melhores amigas, mas deveria. E ela ainda mostra de maneira muito pessoal como a relação com outras mulheres que viveram coisas parecidas a ajudaram a encarar o que viveu.
Eu assisti duas vezes, conversei com algumas pessoas no instagram sobre e uma coisa que me pegou demais quase no finzinho do filme foi uma fala da Elizabeth Sankey que apesar das péssimas experiências até hoje, eu acabo acreditando que é verdade:
Toda mulher é uma bruxa, e toda bruxa precisa de um clã.