Provavelmente minha convicção, aquilo que eu vivo, respiro, escrevo, falo sobre o tempo todo não seja uma surpresa pra ninguém, além de mim mesma.
Eu achei que eu tivesse abandonado isso lá atrás, depois de me debater na escrita, na política, no berro, na rua, na ocupação pregando lona e fazendo mingau pra crianças que não são minhas. Eu abandonei porque doía e era como secar gelo.
Achei que estava abandonado, mas não está, está em mim essa sede de querer ver todo mundo igual, e pra me lembrar porque meu sangue ferve parece que a vida me jogou no colo o lembrete do que é ser mulher, de como somos vistas, pra que servimos, o mundo resolveu matar um ou dois pretos de forma violenta todas as terças feiras, tornando muito dolorido e irônico as nossas quartas.
Achei que tivesse matado em mim a vontade de ver um mundo diferente pra quem vier depois de mim, e não falo dos meus filhos e netos, falo dos nossos.
Eu achei que tivesse abraçado um outro lado da moeda, mas não importa de que lado ela caia depois do giro no ar, eu sigo querendo a mesma coisa. Quero que parem de nos matar, quero não ter medo, quero não me sentir menor, quero não ter vergonha de quem eu sou. Quero ter a coragem de olhar nos olhos e dizer que amo você sem que você me coisifique na sequência. Quero não precisar pensar no pior. Quero que as pessoas tenham o que comer, e que a vida não gire em torno de um punhado de dólares.
Quero não precisar mergulhar fundo demais, subir pra tomar ar e precisar voltar, pra buscar quem ainda ficou lá embaixo. Às vezes a pressão é tanta que a gente só encosta nas pontas dos dedos umas das outras, mas precisa subir de novo, ou não sobra ninguém pra esse resgate.
Eu vivo pra um mundo utópico, a sociedade perfeita. E vocês podem estar me imaginando com o braço em riste enquanto toca “A internacional” no fundo, mas não é sobre isso, não é só sobre isso.
Quando e se essa coisa que me move for construída, a gente vai poder se olhar de outras formas, falar de outras formas, viver de outras formas. A preocupação será outra, e desejos vão poder ser singelos e mais possíveis.
Muito do que hoje me move é sobre sobreviver, e tudo é sobre o que minhas mãos conseguem produzir até sangrar, seja do esforço, seja dos murros nas pontas de faca. Mas eu quero que seja sobre só poder tocar o rosto bonito do meu filho, que seja pra que as suas mão estejam protegidas por luvas aos domingos para que não sangrem, para que as suas mãos jamais permitam que as portas do castelo prendam a princesa lá dentro, pra que suas mãos escrevam um mundo de paixões e que todas sejam correspondidas, para que suas mãos afaguem as cabeças suadas de muitos pulos e segurem outras mãozinhas sempre pra dizer a verdade, para que suas mãos separe as folhas amarelas das plantas e que você enxergue a beleza do que seca mas só morre se a gente sentir que está morto, para que suas mãos se estendam sempre num convite pra comer alguma coisa muito gostosa, mesmo que essa coisa não seja sua, que suas mãos possam passar pelo seu cabelo maravilhoso e que não seja só você a afagá-los e sim alguém que mereça tamanha proximidade, para que suas mãos façam música e que toda a canção que você é seja amada por inteiro, para que suas mãos filmem embaixadinhas invisíveis no calor do que é sua casa, pra que suas mãos possam carregar muitas pizzas e segurem firme as minhas nos momentos muitos bons e também naqueles ruins, para que suas mãos segurem o tempo para que você possa guardar seus filhos com o tamanho que eles têm hoje, para que suas mãos produzam comidas bonitas e que você tenha sempre a palavra do suco verde e da hidratação com você, para que mesmo na sua dor suas mãos se estendam a lugares que você escolheu estar seja pra tirar a gente do banho, seja pra cavar um buraco e esconder um segredo, para que suas mãos continuem teclando o amor e o carinho até que as barreiras da linguagem deixem de existir.
Se eu fervo por dentro, saio da cama, brigo, pego no megafone, escolho estar nos lugares em que estou é porque eu preciso que o mundo mude pra minha existência possa ser possível nele, mas também porque eu nos quero iguais, pra poder sentir que a gente pode olhar uns pros outros de verdade e sentir que estamos sendo vistos de volta. Mãos que constroem e fazem tanto, sempre podem fazer algo melhor.